Não raro, é colocada a questão: «Para que serve a
Filosofia?» A resposta parece não ser fácil. E porquê? Porque se nos for
colocada uma questão de índole mais prática, como, por exemplo, «para que
serve a matemática?», a resposta emerge de pronto: «para aprender a fazer
contas e aplicá-la no nosso dia-a-dia». A Filosofia, porque é uma concepção do mundo e da
vida, exige resposta mais elaborada do que aquela de demos para a matemática, e
está muito distante do pensamento do
quotidiano, embora a Filosofia seja «a actividade mais
natural do homem e o inquérito filosófico o mais caracteristicamente humano»
(Rafael Gambra).
Ora, o que, aparentemente, remete a Filosofia para fora
do senso comum é a sua natureza, dado que a Filosofia é uma disciplina muito
exigente consigo mesma. Com efeito ela é pensamento crítico que se
auto-examina permanentemente,
que questiona os seus próprios
fundamentos, que interroga todo o outro saber que a humanidade já produziu,
ele próprio vindo da Filosofia. Aliás, a Filosofia está na origem de todas
as ciências, tal como se desenvolveram a partir dos filósofos
pré-socráticos, de Sócrates, Platão e Aristóteles, na Grécia Antiga, cuja
actividade corresponde a um novo paradigma, diferenciado do pensamento
mítico e religioso. Neste tempo da Filosofia, a vida, os fenómenos da natureza e o saber já não
obedecem aos caprichos dos deuses. Os primeiros filósofos desenvolvem um
enorme esforço de reflexão sistemática para entenderem a realidade, que
começando pela apreensão do mundo natural atêm-se na dimensão humana, mas
também na dimensão abstracta como a metafísica. É a liberdade racional em acção, ou
seja, o poder da razão.
Sem ignorar o seu campo privilegiado de reflexão, como a
Metafísica, a Lógica, a Ética, a Estética, a Teoria do Conhecimento, a
Hermenêutica, etc., a Filosofia, na época Antiga e adentro nos séculos da
era cristã, englobava todos os ramos do conhecimento puro [diferentemente
das artes e ofícios]. Só muito lentamente, alguns ramos do conhecimento
foram conquistando a sua autonomia, como a matemática, a astronomia, a
medicina, a história, a biologia, a física, de entre outras. Só a partir do
século XVI, e mais proficuamente, no século XVIII, é que se advoga e acentua
mais a distinção entre Filosofia e Ciência. A ideia de demonstração faz o
seu caminho, exige-se a prova do que é dito ou teorizado. Valoriza-se a
racionalidade.
Na sua origem, estas características são comuns à
Filosofia e à Ciência. Tudo pode ser dito, qualquer hipótese pode ser
formulada, mas para que se revista de credibilidade deve ser argumentada,
justificada, demonstrada.
Assim, o saber que a Filosofia proporciona, enquanto
saber crítico, faz com que cada um de nós possa tomar decisões com mais
acerto, mesmo na vida quotidiana. Torna-nos mais conscientes relativamente
às nossas posições perante as coisas da vida. Liberta-nos da tirania da
ingenuidade e do «ouvi dizer que…», do «diz-se que…», torna-nos mais atentos
e menos manipuláveis. Como alcançar tal desiderato? Através do pensamento
crítico, da reflexão, da atitude interrogativa, mas também argumentativa, da
dialéctica, aceitando o pensamento divergente, para o pôr em causa, se for
caso disso.
Pode agora dizer-se que a Filosofia sempre serve para
alguma coisa, uma vez que, como diz Gramsci «Todos somos filósofos», no
entanto, temos que distinguir o «filósofo» que todos somos, que
ocasionalmente filosofa espontaneamente, do filósofo que sabe do ofício, o
filósofo intencional, que concebe uma visão do mundo e da vida, que
incessantemente prossegue a verdade e na busca de fundamentos para as suas
ideias, princípios e concepções.
Aristóteles dizia que a filosofia começa com o espanto,
ao verificar-se que, afinal, nem tudo o que parece é, e isso é susceptível
de nos causar intranquilidade; enquanto que Bertrand Russell aconselha a que
sejamos capazes de distinguir a aparência da realidade. Estas mensagens não
deveriam ser ignoradas pelos seres pensantes.
Se, portanto, todos somos filósofos, desde que não
olhemos a realidade de modo ingénuo e apático, talvez já possamos afirmar
que, afinal, a Filosofia serva para alguma coisa. Este servir para alguma
coisa está, obviamente, afastado do plano das necessidades materiais do
quotidiano.
Assim, em primeiro lugar, poder-se-á afirmar que a
Filosofia possibilita a clarificação dos princípios, métodos, objectos e
implicações das Ciências e de outras disciplinas intelectuais, por forma a
evitar fundamentos falsos e inseguros, falácias argumentativas, dogmas
sub-reptícios. Em segundo lugar, ensina ou, pelo menos, estimula o homem a
reflectir criticamente sobre a vida e o mundo em que permanentemente está
envolvido. É coisa pouca?
(António
Pinela, Reflexões,
Julho de 2010).
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