O ensino da Filosofia não se tem
livrado da ideia, propalada por espíritos pouco dados à reflexão, de que
se resume a um estudo cronológico ou temático dos grandes filósofos,
tendendo, por esta via, a transformar-se num saber mais enciclopédico
que formativo. Pondo de parte esta ideia, por agora, quem, em
consciência, duvidará que a familiaridade com os grandes filósofos e os
temas por eles tratados é desejável para a aprendizagem da Filosofia?
Se não se reflectir sobre as grandes
questões, que desde sempre preocuparam os homens, com a ajuda de Platão
ou Aristóteles, Santo Agostinho ou Tomás de Aquino, Descartes ou Leibniz,
Kant ou David Hume, Karl Jaspers ou Gabriel Marcel, sem ignorar as
investigações sobre a significação e o sentido da acção com Paul Ricoeur,
não se poderá nem pensar nem oferecer uma boa formação filosófica aos
nossos alunos, ou, em geral, a todos aqueles que se interessam pelas
coisas do pensamento.
Por isso, é aconselhável, logo no início
do estudo, precisar o âmbito do mesmo, assinalando o que diferencia esta
disciplina das restantes. Para tanto, o melhor caminho a seguir, após
breve elucidação dos antecedentes históricos da Filosofia, será procurar
esclarecer a seguinte questão: De que falamos quando nos referimos à
Filosofia? E, a partir daqui, aprofundar os conteúdos a ela
inerentes, susceptíveis de satisfazer os objectivos que a questão
requer.
A ideia de escrever sobre «Para que
serve a Filosofia», é um objectivo que invade o meu espírito desde
cedo, quando percebi que os meus alunos tinham dificuldade em
compreender o sentido da disciplina ou, melhor dito, os sentidos que o
vocábulo Philosophia envolve.
Alguns dos meus alunos diziam-me que
estudavam, estudavam… e que até «tiravam boas notas», mas que, mesmo
assim, tinham dificuldades em explicar, com convicção, o significado da
disciplina estudada. Sabiam o que é a Matemática e para que serve;
sabiam que o estudo do Português lhes permitiria compreender melhor os
textos que liam ou ouviam, ao mesmo tempo que lhes ensinava a
desenvolver uma escrita mais compreensiva; enfim, sabiam que a Geografia
permitir-lhes-ia conhecer diversas regiões, povos e culturas.
Mas saber o que é a Filosofia,
para que serve, que nos ensina, era assunto que aqueles alunos, como
os "meus", tinham dificuldade em compreender e, depois, esclarecer.
Diziam eles que estavam habituados (até ao 9.º ano de escolaridade) a
ler textos com conteúdos mais objectivos, não sendo preciso reflectir
muito sobre os mesmos.
Ao lerem estas linhas, alguns leitores
dirão: «Se alguns dos seus alunos tinham dificuldade em
compreender o sentido da Filosofia, a responsabilidade é sua!» É
possível que assim seja. Dirão então que eu não fui capaz de transmitir
a dimensão do pensamento filosófico, o sentido da reflexão, o gosto
pelo saber, etc. Talvez seja tudo isto. Mas também é verdade que
esta disciplina é um pouco diferente das restantes. Não se aprende com
uma breve leitura; requer análise, reflexão, questionamento; requer que
se tome posição sobre a vida, os acontecimentos e o mundo. E é
exactamente por isso que resolvi repensar a disciplina que leccionei, na
sua relação com a vida, com as coisas do quotidiano, com as pessoas
concretas, com a sociedade, enfim, com tudo aquilo que compromete a vida
humana.
Dizem alguns pedagogos que as
disciplinas que constituem os curricula do Ensino Secundário não
oferecem grandes dificuldades de estudo, embora apontem a Matemática e o
Português como sendo matérias mais difíceis. Talvez seja verdade, não
questiono isso no âmbito deste trabalho. Os meus alunos diziam que estas
disciplinas são mais delimitadas e concretas que a Filosofia. Ao lerem
um livro ou um manual de uma daquelas disciplinas ficavam a saber de que
conteúdo se tratava, logo à primeira. Já não era bem assim com a
Filosofia, lamentavam-se!
«A Filosofia exige», verbalizavam, «que se
leia muito, os textos são extensos e complicados, temos que conhecer
grande número de conceitos, de definições…» Esta disciplina «obriga-nos
a pensar sobre assuntos que antes não conhecíamos; temos que estar
atentos às temáticas e reflectir sobre coisas que nos eram completamente
alheias e que, talvez, não nos interessem… Como isso da
ontologia, da metafísica, da fenomenologia, da lógica; temos que
estudar os valores, como a ética, a estética, a religião, e temas
como a liberdade, responsabilidade, o conhecimento, o ser e
tantos outros assuntos que nunca estudámos antes. Que nos interessa tudo
isto? Para que serve o seu estudo?», interrogavam-se.
E, prosseguiam: «sabemos, ainda, que a
prática da educação física serve para educar o corpo, o
estudo da Biologia permite-nos conhecer o corpo humano,
mas a Filosofia? Para que serve a Filosofia?»
Tentar esclarecer estas e outras questões semelhantes é a tarefa que me
proponho desenvolver nas páginas seguintes. Provavelmente, ficarão
muitas dúvidas por elucidar, com a leitura desta reflexão surgirão
outras que "obrigarão" o leitor a reflectir sobre o que lê e sobre as
dúvidas que vão brotando no seu espírito.
A acrescentar às primeiras observações, no
decurso do estudo da Filosofia, aperceber-se-á que esta disciplina
deverá ser vivida, e não memorizada ou "cabulada". A vivência da
Filosofia faz-se, primordialmente, em contacto com o professor da
disciplina ou com as obras dos filósofos. Pouco vale memorizar meia
dúzia de conceitos para impressionar o seu interlocutor – amigo, colega
ou familiar – para mostrar que sabe. O saber constrói-se passo-a-passo,
ouvindo, lendo, reflectindo, experimentando, debatendo, explicando,
pondo à prova. Assim, para sedimentar e aprofundar os seus
conhecimentos, leia textos de Filosofia indicados, sobretudo, em
bibliografias específicas.
Parta à descoberta de uma disciplina (ou
aprofundamento da mesma) que lhe será muito útil, que mais não seja,
para compreender os meandros do pensamento filosófico, cujas raízes
remontam ao século VI a.C., sendo um dos pilares primordiais da cultura
Ocidental. Aliás, Karl Jaspers diz mesmo que a Filosofia é importante
para todos, porque «todo o Homem enquanto homem filosofa», embora
acrescente que, «o pensamento filosófico sistemático requer estudo».
Como deverá, então, iniciar-se o estudo do
pensamento filosófico? Deverá o aprendiz de Filosofia estudar as ideias
e concepções filosóficas dos grandes filósofos e considerá-las como
suas? Deverá, antes, aprender (memorizar) conceitos e mostrar que os
sabe quando solicitado? Ou, pelo contrário, deverá, o iniciado no estudo
desta disciplina, tentar compreender os grandes temas que preocuparam e
preocupam os filósofos, reflectindo sobre eles, a fim de lhe apreender o
sentido e o valor?
António Sérgio, filósofo e
ensaísta português, ensina, na sua qualidade de aprendiz mais velho,
como ele próprio escreve, que o aprendiz de filósofo não se deve
apressar a adoptar soluções, antes deverá procurar conhecer bem os
problemas, habituando-se a ver as dificuldades reais que se deparam nas
coisas que se afiguram fáceis ao simplismo e à superficialidade,
característica do senso comum. Para uma boa aprendizagem da Filosofia,
os conselhos dos filósofos António Sérgio e Karl Jaspers são de
considerar. Quem seguir estas orientações, verificará que, ao contrário
do que é vulgarmente dito, a Filosofia não é uma disciplina difícil de
estudar. Todas as disciplinas têm as suas dificuldades próprias, e
nenhuma se aprende se não for estudada. O que se diz é que a Filosofia
não se memoriza como se faz com um número de telefone, uma fórmula
química, um poema de Camões ou uma receita de culinária. A Filosofia
estuda-se reflectindo sobre as ideias, as concepções, os princípios
propostos pelos filósofos, pelos professores, pelas circunstâncias da
vida, compreendendo e elucidando sentidos e amplitude.
Saber Filosofia e filosofar não é adoptar
umas tantas ideias de autores consagrados e debitá-las como se fossem
nossas; saber Filosofia e filosofar não é aprender apenas a História
da Filosofia (o que já é muito importante) e descrever
sistematicamente, a vida inteira, as ideias dos filósofos estudados. Não
se diz que não é importante conhecer a História da Filosofia, o que se
afirma é que o filósofo, para além do domínio da História da sua
disciplina, por definição, faz filosofia. E fazer filosofia não é
adoptar, tão só, as ideias dos outros, sem sair delas, mas é construir
também as suas próprias ideias e concepções sobre a vida e as realidades
que o envolvem.
Por isso, começar a penetrar no espírito
filosófico significa
compreender
profundamente os problemas do Homem; apreender as dificuldades efectivas
que nas coisas se afiguram fáceis; compreender e superar a
superficialidade do que vulgarmente denominamos por senso comum.
No entanto, como qualquer outra
actividade, também o iniciado nos assuntos da Filosofia parte de
experiências que não são suas; todos aprendemos com as experiências dos
nossos mestres, e isso não é nenhum defeito, nem actividade menor; no
entanto, se pretendemos ir mais além no saber, depois de nos
familiarizarmos com aquelas experiências, até que as tenhamos como coisa
nossa, é preciso ter a capacidade suficiente para nos irmos afastando
delas e a partir delas formarmos as nossas, como já fizera
Aristóteles em relação ao seu mestre Platão.
Note-se que nenhum pensamento é genuíno,
isto é, o nosso pensamento parte sempre do pensamento anterior ou
contemporâneo. O que é genuíno é o modo como organizamos os nossos
pensamentos; o que é original é a forma como vemos e concebemos o mundo,
como propomos soluções, como resolvemos problemas. Mas, no limite, tudo
está relacionado com as nossas aprendizagens anteriores, as nossas
vivências e valores, a nossa educação e instrução, as nossas influências
e cultura, enfim, como o nosso caminho que sempre nos marcará.
Sem a menor dúvida que o estudo da
Filosofia, seguindo regras, capacita o estudioso a ser capaz de se
distanciar da realidade imediata e empírica que até então contactou; de
proceder a novas descobertas e a identificar novas perspectivas no seu
conhecimento, a saber, na história, nas ciências, na literatura ou,
simplesmente, no saber do quotidiano; de descobrir que, afinal, as
questões filosóficas não são algo que transcenda o comum dos mortais,
mas que emergem da interioridade e exterioridade humana; dos desejos e
vontades e das frustrações; dos interesses e da incerteza; da capacidade
de agir e das situações-limite; das provações e da esperança.
Finalmente, se a leitura deste livro lhe sugerir algumas dúvidas ou
desassossego intelectual, então o objectivo a que me propus será
alcançado: inquietar as mentes para que sintam necessidade de
reflectir sobre a problemática da vida. E lembre-se que a dúvida e a
inquietação intelectual são caminhos possíveis para chegar ao
conhecimento. Não fique preocupado se as dúvidas se apinham o seu
espírito. Procure esclarecê-las por si, em primeiro lugar. É muito
importante que o faça. Se ainda assim persistirem, valha-se da sua
convivência directa ou experimente o contacto com as academias.
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