A experiência concreta é
a que mais nos aproxima da realidade. Esta aproximação, no campo
individual, faz-nos tomar consciência da nossa situação no mundo e da
dimensão da nossa capacidade de resposta, perante as situações vividas; no
campo social, faz-nos dar conta da gravidade dos riscos que corre a
sociedade do nosso tempo.
A nossa sociedade, na
compreensão de Gabriel Marcel, vive uma das maiores ameaças à liberdade
humana: o regime de opressão burocrática. Cumpre mostrar, por isso,
que esta tendência se desenvolve no sentido da burocratização do mundo, em
que actividades puramente parasitárias e funcionais não só são incapazes de
criar como até são destinadas a entravar, a paralisar toda a criação humana
possível.
Neste tipo de sociedade,
que é hoje a nossa, já lamentava Gabriel Marcel, quando escreveu a obra
Les Hommes contre l'Humain, em 1951, faz-se apelo à quantidade
menosprezando a qualidade, sacrifica-se o diálogo em prol da comunicação de
massas, ignora-se o existencial promovendo o funcional. E, como consequência
desta situação, emerge a mentalidade tecnocrática que, como ele alerta,
instaura, inevitavelmente, a preeminência das categorias de «função» e
«rendimento».
Esta situação leva o
autor de Position et Approches Concrètes a dizer que a idade
contemporânea parece caracterizar-se pelo que se poderia chamar a
desorbitação da ideia de função. Tal ideia, como o próprio filósofo
esclarece, na mesma obra, compreende, ao mesmo tempo, não só o sentido das
funções vitais, como também o das funções sociais.
Assim, no plano da vida
prática, o indivíduo tende a aparecer, a si próprio e também aos outros,
como um simples feixe de «funções», cuja hierarquização se afigura
problemática ou, pelo menos, sujeita às interpretações mais contraditórias,
uma vez que estão em causa jogos de interesses muito diversificados.
Como consequência desta
interpretação da vida, a sociedade organiza-se de tal modo que tudo concorre
para determinar a identificação do homem e das suas funções, as sociais, mas
também as vitais. E assim a sociedade passa a querer saber que funções
desempenha aquele indivíduo específico, como sejam, por exemplo, as funções
de empregado, de sindicalista, de eleitor e outras.
Marcel diz que,
consideradas em si mesmas, estas categorias (ou funções) nada têm de
pejorativo. No entanto, são susceptíveis de perverter as relações humanas,
logo que são desvirtuadas com o sentimento que considera o homem apenas como
instrumento de «rendimento» e não, essencialmente, como ser humano.
Nesta perspectiva,
quanto menos os homens são pensados como seres humanos, mais a tendência
aumenta para os considerar como máquinas susceptíveis de fornecer um certo
rendimento, e só neste sentido se justificaria a sua existência; pelo que os
homens acabariam por não ser outra realidade que não fosse o valor do seu
próprio rendimento.
Ao serviço de
burocratas, os «homens-função», forçados a abandonar as suas actividades
concretas e criativas, em favor de tarefas abstractas, despersonalizadas e
anticriativas, tornam-se funcionários distantes, melancólicos e
mecânicos. Por conseguinte, como o homem está sujeito a acidentes e a
doenças, o homem-função deverá submeter-se, como um relógio, a
verificações periódicas. E, como diz Marcel, como corolário desta ideia, a
aparece aqui como uma casa de controlo e atelier de reparações, à
semelhança da oficina do relojoeiro.
Enquanto o
homem-funcionário passar naquele controlo, será chamado a prestar o seu
trabalho, único fim para que serve, segundo a tendência das «sociedades
desenvolvidas». Deixando de ser produtivo, de acordo com as medidas
pré-determinadas e que unicamente interessam aos detentores do poder
decisório, o funcionário passará a ser considerado uma peça sem utilidade,
uma falha na engrenagem, um empecilho ao desenvolvimento, um peso na
sociedade, que é preciso corrigir.
Conhecedor desta
situação, Gabriel Marcel identifica, na pretensiosamente chamada
civilização desenvolvida actual, a vontade dos «burotecnocratas» em
institucionalizar como arquétipo o homem-rendimento, objectivamente
reconhecido como tal. Ou seja, esclareça-se, o homem que, pelo tipo de
actividade que desenvolve, mais se assemelha a uma máquina.
Em
consequência desta semelhança técnica, o filósofo chama a atenção para o
facto de esta dura experiência, por que passa o ser humano do nosso tempo,
parecer mostrar que o ritmo exclusivamente humano tende em transformar-se no
ritmo de uma máquina, de um autómato. Ritmo que não é de modo nenhum
supra, mas infra-orgânico; cujo desregramento corre o risco de se
introduzir no próprio coração da existência. Todavia, Marcel diz que o homem
(funcionalizado), que parece esforçar-se por se tornar uma máquina, é ainda
assim um vivente, mas que desconhece, cada vez mais sistematicamente, a sua
condição de vivente.
O homem está, já,
de tal modo habituado a que o considerem como instrumento de rendimento, o
que complica a sua situação, que Gabriel Marcel está convencido de que a
chamada civilização, ou mundo desenvolvido, é assim que pensa e considera o
homem: um instrumento. Com efeito, é a partir da máquina e tomando-a por
modelo que o homem cada vez mais é pensado.
Enfim, importa acentuar
que a atitude tecnocrática,
tal como se apresenta aos olhos de Marcel, despersonaliza o homem, uma vez
que o identifica não pelo que ele é, enquanto pessoa, mas pela função que
desempenha. Decorre desta visão do homem que a função que ele exerce o
degrada e o substitui naquilo que ele realmente é: uma pessoa e não
um funcionário. (António Pinela,
Reflexões, Fevereiro de 2006).
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