Assistia, recentemente, a uma conferência, em Lisboa,
sobre o tema em epígrafe, quando, depois do conferencista ter explicado o
que se lhe oferecia dizer sobre Democracia e Liberdade, se ouviu uma
voz convicta: «a democracia teve origem na União soviética». Fez-se
silêncio. Aquele silêncio que ensurdece. Impávido, o conferencista, que
tinha iniciado a sua palestra pelas origens da democracia, passado o
silêncio, continuou o seu trabalho, interrogando a assistência: «mais alguém
quer intervir?». De imediato, instala-se a confusão. Todos querem falar ao
mesmo tempo. «É a democracia», insinua alguém. O tema suscita intervenções
contraditórias. E, segundo várias propostas, a democracia passa por
múltiplas origens. Além da já citada, tem origem no Chile de Pinochet, diz
um; em Cuba com Fidél Castro, adverte outro; na China de Mao Tsé Tung,
defende ainda outro, etc., uma pluralidade de origens, cada uma com as suas
cores. Esta pluralidade do conceito, obriga-me a rever velhos apontamentos
universitários, dadas as afirmações tão categóricas, que nem Kant as poria
em dúvida, tal a convicção com que foram proferidas.
Façamos, então, uma muito breve retrospectiva histórica
sobre o assunto. É comum escrever-se em manuais e obras de divulgação, que
as primeiras experiências de democracia emergem na Antiguidade. Os gregos
inventaram a democracia, diz-se. E na Grécia Antiga são os próprios cidadãos
que tomam as decisões que dizem respeito à governação da sua cidade (polis).
No entanto, esta forma de democracia ainda é muito incipiente, porquanto,
nem as mulheres nem os escravos são considerados cidadãos. E a eleição, que
é para nós a base do sistema democrático, ocupa apenas lugar secundário no
processo de escolha. Os gregos preferiam a eleição dos magistrados por
sorteio.
Embora na Europa Medieval não existisse um Estado
democrático, em algumas cidades da Flandres e Itália funcionaram
experiências próximas da democracia. Ao nível das nações já existiam
assembleias representativas eleitas pelo povo, como o Parlamento em
Inglaterra, as Cortes em Espanha e os Estados Gerais em França. No entanto,
apenas no caso inglês a assembleia gozava de poderes reais, devido à
imposição ao rei da Magna Carta, em 1215.
Mais tarde, no século XVII, enquanto a monarquia
absolutista triunfava na maior parte dos Estados europeus, é ainda a
Inglaterra que implanta o primeiro regime democrático, garantindo, ao mesmo
tempo, os direitos e as liberdades fundamentais. John Locke dá a conhecer,
em 1690, o primeiro corpus moderno e coerente da democracia, fundado
em princípios básicos, como: a liberdade é um direito fundamental do Homem;
um governo só é legítimo se o seu poder estiver assente na vontade popular;
o poder de fazer as leis (poder legislativo) e o poder de as aplicar (poder
executivo) devem estar separados.
Jean Jacques Rousseau vem dizer, no seu Contrato
Social (1792), que cada indivíduo detém uma parte do poder e utiliza-o
de acordo com a vontade geral. Tal vontade, segundo ele, manifesta-se por
sufrágio universal e de acordo com a regra da maioria.
Na América Norte, a revolta dos colonos ingleses, com a
Declaration of Rights (1776), está na base da Constituição
democrática dos Estados Unidos. Enquanto que a Revolução Francesa (1789)
marca o início do fim das monarquias absolutistas, que se baseavam no
direito divino, e possibilita a emergência da Declaração dos Direitos do
Homem e do Cidadão. Estes dois eventos político-culturais iniciam o processo
do triunfo da democracia, que se desenvolve ao longo do século XIX. A luta
pelo sufrágio universal, que se generaliza na primeira metade do século XIX,
e pela abolição da escravatura, conseguida, oficialmente em 1868, marcam
também o ideal democrático do século XIX.
No entanto, no século XX, os
valores democráticos da liberdade irão ser rejeitados por dois regimes
antagónicos: as ditaduras fascistas e nazis (na Itália e Alemanha); os
regimes comunistas (principalmente, na União Soviética). Os primeiros são
afastados com o fim da Segunda Guerra Mundial; o regime soviético cai com a
revolução democrática de 1989 e com o fim da URSS em 1991.
Nos nossos dias, a democracia pluralista e liberal é
aceite na generalidade dos países, reivindicando para si o exclusivo do
modelo democrático.
Se os meus apontamentos ainda têm actualidade, quem tem
razão? Que queremos dizer quando falamos de democracia? Falamos da
democracia que queremos impor aos outros ou da democracia que emana de todos
e a todos obriga por igual, a democracia participada? (António Pinela,
Reflexões,