A Filosofia desponta num
determinado momento específico da nossa cultura. Historicamente, esse
momento situa-se nos princípios do século VI a. C. No entanto, a
preceder esta data fora percorrido um longo caminho pelo homem, em que
ele não tem ainda ideias claras sobre si mesmo, nem pensamentos
distintos e bem definidos sobre as coisas, a vida e o mundo.
Naquele tempo, a comunicação entre os homens está impregnada de muitos
mistérios. Todas as imagens primitivas do mundo chegam até nós
envolvidas de uma atmosfera mística ou mágica, transmitindo ou sugerindo
uma explicação do universo mais próxima dos nossos sonhos do que da
realidade. Todavia, tais explicações que nos parecem irreais evidenciam
já uma profunda criatividade da imaginação humana. E, daquela confusão
primitiva, que é a vivência humana, emerge lentamente, durante milénios,
o pensamento mítico.
A palavra «Mito» (deriva
do grego: muthos - μύθος -, fábula)
significa relato dos tempos heróicos do passado. Esta definição encerra,
em si, uma característica comum a todos os mitos daquele tempo: o seu
carácter fabuloso, algo inventado, sem existência real, mas crível para
os povos que viviam e praticavam o mito. Como escreve Mircea Eliade,
«o mito conta uma história sagrada, quer dizer um acontecimento
primordial que teve lugar no começo do Tempo, ab initio. Mas
contar uma história sagrada equivale a revelar um mistério, porque as
personagens do mito não são seres humanos: são Deuses ou heróis
civilizadores, e por esta razão as suas gesta constituem
Mistérios: o homem não poderia conhecê-los se lhos não revelassem» (Mircea
Eliade, O Sagrado e o Profano – A Essência da Religiões, Lisboa,
Edição Livros do Brasil, s.d., p. 107). O mito é, portanto, uma
revelação.
O pensamento mítico é
muito antigo e não pode, com rigor, ser datada a sua origem. Sabe-se,
contudo, que começa a perder a sua influência por volta do século VI
a.C. Mas o mito faz parte integrante da natureza humana e existe em
todas as culturas. Todos os povos criaram os seus mitos da criação do
universo e do próprio homem, e até mitos mais particulares que se
reportam a coisas ou a acontecimentos menores. Sendo uma presença
constante na mentalidade dos povos, o mito ilumina o seu mundo com
espíritos ou deuses benfazejos e malfazejos, e com criações fabulosas,
fruto da sua imaginação efabuladora.
Quando no homem desperta a
consciência humana e verifica que no seu habitat coabitam outras
espécies diferentes da sua, que lhe causam problemas, e que outros
grupos humanos são hostis entre si; quando se sente aterrorizado pelas
forças da natureza como o mar tempestuoso; quando as tempestades lhes
destroem os seus bens, começa a intuir que existem causas que obedecem a
leis misteriosas que desconhece; e tendo dificuldade em determinar que
causas são essas, o homem passa a atribuí-las ao destino, à divindade e
aos deuses da terra e dos céus, porque são estas forças misteriosas que
explicam como tudo acontece. Inicia-se, então, um longo processo de
organização dos espaços, nascendo, em simultâneo, o desejo de dominação
entre grupos para afastar o medo e a insegurança face a ataques
exteriores de animais ou pessoas. Perante esta realidade, os povos
encontram nos mitos a força anímica bastante para os unir no seio das
suas comunidades.
Sendo, essencialmente,
populares e anónimos, estes relatos mitológicos põem em cena seres que
encarnam, sob uma forma simbólica, forças da natureza ou aspectos da
condição humana. Por isso, uma vez dito o mito, este passa a ser
considerado verdade absoluta e indiscutível: «É assim, porque é
assim». E, desta forma, os transmissores do mito sustentam a validade
das suas histórias sagradas e das suas tradições religiosas. Porquanto,
o mito proclamando a aparição de uma nova situação cósmica ou de um
acontecimento primordial é sempre uma criação sagrada. Mas o mito não é
uma explicação que satisfaça a curiosidade científica, é sim um relato
que faz reviver uma realidade original, respondendo a uma necessidade
religiosa e a aspirações morais e práticas que todos comungam.
Sem que se possa ter a
certeza, o mito terá surgido quando a religião procurou assenhorear-se
de tudo o que a fantasia humana divinizou, e o homem nele encontrou o
modo apropriado para explicar o Mundo e os seus fenómenos naturais. Para
formar um mito, bastaria o aparecimento de um fenómeno natural estranho,
assombroso e insólito. E, quanto menos fosse compreensível a sua
estrutura, melhor para excitar a imaginação criativa dos homens,
provocando, ao mesmo tempo, o medo, a insegurança ou a sua curiosidade.
Daí que as primeiras
“interrogações” humanas tenham recaído, não propriamente sobre o mundo
restrito do homem, mas sobre realidades mais complexas para pensamento
humano: a origem do mundo e das suas partes, os fenómenos da
natureza – realidades que lhe são exteriores – foram, muito
provavelmente, os primeiros motivos a que os míticos prestaram a sua
atenção. O Mito constitui, portanto, uma primeira forma de explicação
do universo e de tudo que nele ocorre. Mas esta primeira
“explicação” e ideias desenvolvidas são ainda muito impregnadas da ordem
sentimental; no entanto, esta forma de pensar é já o princípio
que conduz o pensamento humano a novos modos de apreensão e
explicação da realidade cósmica.
Sendo, embora, uma
explicação “irracional”, já se faz um esforço para estabelecer alguma
correlação entre o efeito e a sua causa, na tentativa de descobrir nexos
de causalidade entre as coisas, isto é, entre as coisas e a sua origem.
Enfim, o mito é uma história tradicional que corporiza as crenças de um
povo no que concerne à criação, aos deuses, ao universo, à vida e à
morte.
Talvez se possa dizer que
os mitos foram as primeiras tentativas de formulação de uma “filosofia”
e de uma “ciência”. Todavia, neste labor mítico, a reflexão pessoal não
é ainda perceptível. O pensamento dos mais esclarecidos vai ainda
limitar-se, por muito tempo, a interpretar e a comentar o mito, única
via por que se desenvolve a sua vida espiritual .
(António Pinela, Para que serve a Filosofia, 2010).
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